07 fevereiro 2011

A capela

A capela
Suas costas doíam terrivelmente, mas isso era incapaz de tirar o sorriso do seu rosto enquanto desvendava a obra perdida no escuro. O trabalho havia sido hercúleo, tomando sem a menor piedade cinco anos de sua vida, que o levaram da semi mendicância entre os retratos da elite do clero até o topo da hierarquia dos artistas, acima de qualquer pintor, escultor ou fotógrafo conhecido. Pietro esticou-se, satisfeito. Aquele trabalho lhe renderia a cadeira de Leonardo e o título de grão-mestre das artes e ofícios.
Naquela noite havia dispensado todos os ajudantes e curiosos para dar os toques finais no painel central pessoalmente. Seu coração havia estado afoito, suas mãos tremiam terrivelmente enquanto seus olhos tentavam se acostumar ao brilho inconstante das lâmpadas de Tesla. Enquanto pintava, Pietro pensou em como era grande o símbolo daquilo tudo e que meros duzentos anos atrás, ele teria sido vitimado e ridicularizado, talvez até mesmo morto pelos descrentes. Mas a verdadeira fé havia crescido e se fortalecido muito nos últimos 500 anos. Tivera seus mártires, fora vítima dos descrentes. Foi causa de guerras sem fim, heresias sem cabimento, mas resistiu através da argumentação pacífica, atravessando a maré de fé ilógica. Pietro pensou na capela negra que hoje se abria para os curiosos e poucos fieis que continuavam presos em uma era de insanidade quase mitológica, que depositavam todas as esperanças em seres intangíveis, tornando-se preguiçosos e dependentes.
Colocou a mão sobre o homem vitruviano que carregava no pescoço e pensou em Da Vinci. Pensou se ele teria coragem para fazer o que Leonardo fez se era digno aceitar o seu lugar. Pensou na imagem de Leonardo, diante dos incultos, falando sobre a vida, sobre a razão sobre a fé, sobre a capacidade do homem e sua supremacia sobre Deus. Pensou em sua morte na fogueira, o pavio acesso de uma era onde o homem seria o agente de todas as respostas.
Enquanto divagava, não ouviu os passos que haviam se aproximado lentamente. Quando a voz rouca do grão mestre falou, um arrepio gelado escapou da terra para percorrer seu corpo.
– É uma obra magnífica, Pietro.
Pietro de voltou para trás e encarou o rosto barbado do grão mestre sorrindo benevolente para ele. Encabulado, o pintor sorriu e balançou a cabeça, agradecendo.
– Foi um toque especial este último painel. Um pouco poético demais para um templo de ciências, mas eu agradeço a homenagem.
O pintor ficou na dúvida se aquilo era um elogio ou uma reprimenda, mas agradeceu da mesma forma.
– Grã Mestre, eu...
– Charles. Pode me chamar de Charles. Eu odeio esses títulos pomposos.
– Charles. Eu achei que cabia um pouco de imaginação para representar o fim do último bastião criacionista.
– Eu entendo, Pietro. Não me importo. Mas como evolucionistas, somos guiados pela razão, o mundo é mais simples sob nosso ponto de vista. Não acontece o mesmo com os criacionistas.
Pietro pensou um pouco sobre isso. Não tinha os criacionistas em mente quando idealizou seu painel e talvez aquilo tivesse sido um erro. Mas o que aquele punhado de crentes poderia fazer contra um mundo fundamentado na razão? Um simples debate esclarecido sobre a obra seria suficiente para que um ser humano estudado pudesse entender as suas razões. Charles provavelmente estava exagerando.
– Estou velho. Pietro. – Charles parecia adivinhar os pensamentos do pintor. – Fiz provavelmente a minha última grande contribuição a humanidade, com a origem das espécies. A supremacia da razão sobre todos os outros argumentos é uma batalha longa e cansativa. Estamos em paz, é verdade. Aprendemos a tolerância e a união, como um estudo lógico para o bem estar da humanidade. Conseguimos transcender o individualismos entendendo que o comunitário é a evolução do individual e colocando em números o valor de muitos contra o sofrimento de poucos. Estamos em paz. A humanidade prospera. Fomos a lua e exploramos os oceanos. Entendemos o nosso lugar no cosmos, acreditamos na nossa própria força. Desvendamos nossa mente e nosso corpo. – Seus olhos se levantaram encarando a obra de Pietro. – Desvendamos nosso passado e com isso ganhamos mais controle sobre o nosso futuro.
Pietro aguardou em silêncio, pensando na grandeza da humanidade e em tudo o que o homem fez para comprovar seu valor. Todas as suas conquistas, todos os seus sofrimentos. Sabia que pertencia a uma humanidade que era muito maior do que a dos seus ancestrais, adoradores de ídolos e da fé sem razão. E então concluiu que não importava, que a mente esclarecida não havia ofensa, apenas outra visão da verdade.
Charles colocou a mão no seu ombro e sorriu novamente.
– É uma obra magnífica!
Os dois olharam para o teto do Museu Natural e permaneceram em silêncio enquanto, acima da cabeça deles, uma fileira organizada de primatas caminhava com passos largos, a cada figura, estendendo-se e alterando-se em constituição e estatura, até seu último ascendente, um homem moderno, estendendo as mãos para a frente, tocando e reconhecendo aquele que era sua imagem e semelhança, outro homem igual a si.


Autor: Diego Guerra