02 dezembro 2009

O Monstro de Martha

"Para Thalita"

No canto do quarto, Martha chorava agarrada a finos trapos de chita e um desejo inclemente de paz.

Havia um torrão seco de noite preso no céu se recusando a ser varrido do horizonte. O mundo era de uma penumbra avermelhada e fria, de um silêncio imaterial, quebrado apenas pelo rosnado de um monstro.

O rosto de Martha sangrava, mas ela não percebia as gotas grossas que se acomodavam abaixo do seu queixo, nem a carne intumescida que distorcia seu rosto redondo. Do seu mundo não restava nada, exceto a chita em suas mãos, o ronco em seus ouvidos e a certeza de que Deus não olha em sua direção.

Houve uma suave dissonância no ronco do animal que fez Martha estremecer e retornar do mundo de lamentos onde seus pensamentos estiveram perdidos. A criatura se revirava entre lençóis, como se tramasse despertar de seus sonhos de carne fresca.

Um pé peludo se projetou para fora  da cama, com unhas amareladas e distorcidas que pareciam tatear o mundo a sua procura.

Sem perceber, Martha se levantou, deixando no chão suas lágrimas, os restos do seu vestido e uma piscina de dor.

Em pé, pode ter uma visão completa do animal que emporcalhava sua cama. Grande e flácido, esparramado em um amontoado de pelos que quase ocultavam a pele morena e calejava pelo sol e só falhava no alto da cabeça, deixando a mostra um pedaço esticado e suado de couro avermelhado.

Martha engoliu um murmúrio baixo que era a manifestação do próprio desespero e esforçou-se para se desprender da parede, sem se submeter novamente aos caprichos da gravidade.

Olhou para a porta do outro lado do quarto e se preparou para sair. Mas para onde iria? Ao lado da porta, sobre uma mesinha, brilhou a resposta escrita na mais bonita prata.

Os passos de Martha não fizeram ruído, embora ela os imaginasse em resoluta marcha. Suas mãos estendiam-se a frente como se Martha tivesse dificuldades de tatear o mundo. Os dedos pequenos de menina repletos de sujeitas e temores.

Martha não apanhou a arma de uma vez. Ela demorou alguns minutos olhando e tateando o metal cromado, como se tivesse alguma dificuldade de desenhar a solução em seus pensamentos. Quando finalmente ergueu o trinta e oito, o fez com grande dificuldade e nenhum jeito.

O monstro continuava na cama. Dormindo.

Uma surpresa maldosa abateu-se sobre Martha quando ela percebeu que não teria coragem. Uma nova onda de lágrimas convulsionou-a desesperadamente. A arma em sua mão oscilava pronta a disparar contra o mundo. Martha respirou pela boca rapidamente e olhou o objeto em sua mão, frio e insensível. Zombando de sua covardia. Prendeu a respiração e encostou a boca da arma embaixo do queixo. Chorou novamente. Pediu a Deus por coragem, mas Deus não perdoava os suicidas e não tinha motivo para encorajá-los. Engatilhou a arma lutando contra os próprios temores.
Na cama o monstro se remexeu. O corpo nu e coberto de pêlos se revelou de sob os lençóis. O rosto bestial parecia em perfeita paz. Tinha um nariz pequeno e um rosto enrugado pela idade. A boca era larga e se abriu mostrando dentes apodrecidos e esparsos pendurados em uma gengiva intumescida e babenta. Fosse o que fosse, Martha pensou, aquilo não era gente. Aquilo era o monstro de Martha. O demônio de seus pesadelos. Seu lobisomem.

Na mão, junto ao rosto, ele segurava um pedaço de chita rasgado de seu vestido.

Martha não soube se foi por isso. Um pequeno pedaço de si, que aquele homem segurava com tanto amor durante o sono, ou se fora a percepção de que Deus não seria capaz de criar algo tão imundo e chamá-lo de homem. Martha sentiu o ódio prestes a sufocá-la e segurou com as duas mãos a arma diante de si, lutando para não tremer. Era só puxar o gatilho e estaria livre. Só puxar o gatilho e seu pesadelo terminaria. Só puxar o gatilho e a fera estaria morta. Mas Martha, mesmo no auge de sua raiva, não podia matá-lo assim.

Sua boca se abriu em desespero, procurando preces, palavras, consolos. Coragem. Olhou novamente o lobisomem e chamou com a voz mais calma que encontrou.

–Pai?

Acertou três tiros em seu peito no instante em que ele abria os olhos.


Autor: Diego 'Diggs' Guerra
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