04 setembro 2008

Nem carne, nem sangue.

A eletricidade corria seu corpo como um zumbido gelado e constante. As juntas de polipropileno rangiam ao som do titânio em seu esqueleto, mas ele apenas forçava mais, seguindo o modelo simulado incrustado em seu processador multicore.
– Como corre! – Samantha protegia os olhos fazendo sombra com os dedos acima dos olhos. Era um dia claro de Abril e havia uma brisa gelada soprando no campo de testes.
– É essa a idéia! – Chang tomava notas em sua caderneta de papel, para o horror de Samantha.
– Nunca vou entender. – Ela viu o corredor deslizar para a direita e continuar seu trajeto imutável.
– O quê? – O monitor acusava calor excessivo entre as juntas do tornozelo esquerdo. Chang anotou a variação mas não achou o problema significativo.
– Você é o maior engenheiro mecatrônico do país! – Samantha pareceu embaraçada enquanto procurava as palavras; tinha muito orgulho do novo amigo.
– E isso é motivo de surpresa? – Sorriu Chang.
– Bobo! O que eu não entendo é porquê você ainda escreve em papel ao invés de comprar um HC como todo mundo.
– Gosto de coisas antigas. – Chang recurvou-se pela murada. Pensou ter visto um espasmo na perna do corredor, mas não estava completamente certo sobre isso.
Samantha não entendia e provavelmente não entenderia nunca. Havia lido em algum lugar que Chang, sozinho, havia avançado a ciência em pelo menos 50 anos, mas o engenheiro acumulava hábitos que haviam sido esquecidos a décadas.
– Ali! Chang apontou a caneta tinteiro para o corredor e franziu as sobrancelhas para Samantha. – Você viu?
Samantha levantou os ombros e sacudiu a cabeça obviamente aturdida. Sua mãe lhe ligaria naquela noite e lhe perguntaria como havia sido.
– Pode parar Mathias. – Chang fez um sinal para o corredor e anotou o defeito apressadamente em seu caderninho. – Seu irmão tem um pequeno aquecimento no tornozelo, a primeira vista não parecia nada grave, mas o calor em excesso está, muito provavelmente, afetando o desempenho da placa de controle de passos. Nada grave, ele ficará pronto antes dos jogos.
– Ah! – Samantha não queria demonstrar sua decepção, mas a verdade é que não havia pensado em se afastar de Chang tão cedo. Queria mais tempo.
– O que foi? Algo errado? – Chang virou-se para Samantha e rapidamente voltou-se novamente para o caderninho, esboçando um pequeno projeto do que poderia ser uma melhoria naquele modelo de perna. Quando o projetara imaginava-o ideal para longas caminhadas. Era surpreendente que ela desenvolvesse velocidade o suficiente para uma corrida como aquela. Iria sugerir alguns ajustes mais tarde, na oficina.
– Queria saber se você não quer assistir um filme, ou coisa assim.
A mão de Chang tremeu o suficiente para estragar o pequeno desenho. Ele voltou-se para Samantha pronto a protestar, mas deteve-se diante do seu olhar. Ela o examinava, constrangida.
– É claro. – Sorriu. – Tem um cinema antigo com projetor de 16mm que eu queria mesmo conhecer.
– Adoro filmes antigos. – Samantha deu dois pulinhos radiantes, fazendo um barulho peculiar sobre o assoalho de madeira.
Chang sorriu. Sorriu pos ela era muito jovem e ele era velho. Sorriu porquê ela usava peças que ele havia desenvolvidos a anos. Sorriu porquê era a coisa certa a fazer. Samantha passou o braço pelo dele e foram juntos encontrar seu irmão.
– Que filme veremos? – Uma nuvem ocultava o sol enquanto dois jatos cruzavam o céu, deixando rastros de fumaça atrás de si.
– Um filme bobo, sobre seres humanos. – Chang não pareceu muito certo sobre isso, mas Samantha não se importava.
–Espero que seja um romance. Adoro os romances humanos. – Samantha tocou o polipropileno do braço de Chang e imaginou a estática se acumulando entre eles. – Como eram os humanos Chang?
O engenheiro soltou uma risada divertida e repreendeu Samantha com um olhar de soslaio.
– Não sou tão velho assim! – Samantha sabia que não. Ninguém no mundo podia ser tão velho assim.


Texto: Diego Guerra (Digs)