02 julho 2008

Não morra com a cara na merda


Sempre soube que esse momento chegaria. Ouço o vento pelas ruas como uma tênue música de ninar tentando me arrastar para o mundo dos sonhos. O suor arde em meus olhos, mas eu não pisco. Não posso piscar. Tento imaginar que continuo na fazenda, atirando em latas. Mas latas não atiram de volta. Latas não gritam de dor. Latas não tem família para chorar sua morte. Meus dedos estremecem um pouco e fico imaginando se terei coragem. Talvez eu devesse apenas esperar pelo impacto da bala. É tão mais fácil morrer... não é preciso mover um dedo, não é preciso pensar em nada. Basta o tempo de uma prece... as vezes nem isso. Seu corpo golpeia o chão, levantando pó enquanto sua alma escapa do mundo e de repente tudo o mais deixa de existir.
Tudo cheira a bosta. Por um momento eu penso que a profecia de meu pai irá se realizar e eu vou morrer na merda. O sorriso se insinua pelos meus lábios sem que eu tenha forças para detê-lo. Uma mulher engole em seco enquanto se esconde atrás de cortinas. Cortinas seguram balas tanto quanto janelas seguram seus olhares. Eu vejo um sorriso em seus lábios e imagino como a minha vida poderia ter sido diferente. Bem, talvez não muito.
Arrependo-me da distração tarde de mais. Ouço a arma engatilhada parte de segundos antes de ouvir um disparo. Uma bala já está no ar, outra logo segue seu caminho. Sinto algo queimando em minha mão e só ao olhar para baixo percebo que eu já disparei, mas não rápido o suficiente. Algo me acerta na barriga como um murro e eu perco a força das pernas. A voz de meu pai volta a trovejar sobre meu destino no esterco e eu arrumo coragem para não cair ainda. Alguma coisa assobia na minha orelha e eu imagino os índios, falando com o vento. Meu dedo aperta o gatilho novamente, três vezes antes de eu conseguir me lembrar do que estava acontecendo. O chão se levanta em explosões de poeira e fragmentos de pedra. O sino da igreja toca uma encomenda pela minha alma. Eu consigo me esconder atrás de uma cocheira, mais caindo do que correndo e sinto algo quente melando minhas pernas. Acho melhor não olhar. Talvez seja sangue, talvez as fezes sujas de minhas tripas, ou talvez seja medo me fazendo mijar nas próprias calças. Não importa, não gosto de nenhuma das opções.
Eu abro o tambor da arma e mantenho a cabeça baixa enquanto ponho mais chumbo no lugar. Um cavalo relincha do outro lado da rua quando é atingido por um disparo. Minha visão fica turva. Lembro do tapa na minha nuca enquanto tentava manter a arma reta, com as duas mãos. "Atira! Vai atira!" O cavalo da fazenda relinchando de agonia era um sombrio acompanhamento para a voz rouca de meu pai. "Atira, seu merda! Você não serve para nada mesmo! Vai morrer na merda sem nunca ser ninguém!" As palavras e os relinchos do cavalo percorreram minha pele, congelando meus nervos e deixando minha mão firme. A arma se engatilha em minhas mãos, sem que eu sequer pense a respeito disso. Sinto um toque quente lambendo o meu rosto, mas já não me importo. Minha coragem se pinta nos quatro estampidos secos que me cobrem os pensamentos. Depois disso, só existe um ar coberto de uma fumaça tão densa quanto o silêncio onde ela flutua. Eu espero a névoa se dissipar dos meus olhos e vejo um cavalo caído do outro lado da rua, ferido por um tiro, morto por três das minhas balas. A quarta bala terminou no fim da rua; no peito do homem morto, com a cara na merda.
Cowboy: Digs 'Coffin' Depper