03 março 2008

Os últimos passos de um morto.

........Esperava que o mundo estivesse coberto pela chuva. Mas não. A noite tinha uma lua clara e esperançosa no céu, com promessas de amanhã que não cabiam a ele. Esperava que seus pensamentos fossem confusos, restos de matéria cinza e morta escorrendo pelo seu queixo. Mas não. Havia uma imagem clara em sua mente, apontando-o como um farolete em direção a casa despontando a sua frente. Esperava que a morte levasse toda sua agonia.
Mas não.
........Seus pés se mexeram com dificuldade, com músculos putrefatos e tendões partidos que lhe emprestavam os movimentos de um marionete sem cordas visíveis. Tinha pressa, mas nenhum fôlego. Seus pulmões não passavam de um amontoado pegajoso de barro. Podia sentir os vermes se movendo, bocas minúsculas e cheias de dentes, mastigando e defecando o que encontrassem pela frente. Gemeria se ainda tivesse língua, mas através de lábios que não existiam mais, as palavras chocavam-se contra ossos descarnados e secos. Cobertos de pó e lembranças.
........Ele enxergou o velho balanço, gemendo sob a brisa amistosa e a luz da cozinha recheada de sons de panela. Permitiu-se um momento de reflexão, sob a mangueira onde tantas tardes pousaram seus corpos. Com os olhos fixos nos galhos que escondiam-nos de Deus, autorizados aos piores pensamentos, aos mais impublicaveis desejos. A mão que lhe restava, era menos que uma garra decrépita onde pendiam três dedos que se agarraram a corda do balanço com uma humanidade que nem ele mesmo poderia reconhecer. Viu sombras na janela, um vulto feminino e só então percebeu o quanto estava cansado. A morte era só aquilo. Cansaço e decepção.
........Havia música tocando em algum lugar, mas ele não poderia mais ouví-la. Um arrepio em seus ossos, era a única coisa que denunciava a voz que gargalhava dentro da casa. A voz que tantas vezes disse que lhe amava. Ele se agitou, moveu-se rápido com os pés trôpegos, caindo e se levantando vezes sem conta, enquanto deixava para trás restos do que fora seu corpo. A luz da janela era como o túnel para o outro mundo, aquela luz que deveria ter arrancado sua alma do corpo em direção a outro lugar se ele não houvesse se recusado tanto a partir. Era mesma luz, brilhando ali, como a promessa de uma outra vida. Sentiu os ossos da perna se partindo e temeu jamais chegar até lá. Seu corpo morto e repleto de vermes tombou para frente esperando espatifar-se contra as flores plantadas sob o batente. Os dedos de sua mão se estenderam desesperados, se agarrando ao que quer que fosse. Tinha conseguido. O braço esforçou-se para ergue-lo até o batente da janela onde estava agarrado e ele percebeu que já não tinha pés, ou pernas. Um lodo esverdeado escorria dele, como o sangue que já não tinha. Mas a ele nada importava, havia conseguido. Tudo o que queria era uma visão.
........Seus olhos mortos demoraram a se acostumar com a luz da casa, depois a varreram de um lado ao outro, esbarrando em todos os objetos que havia deixado para trás. Seu álbum de casamento, as lembranças de lua de mel. Seu sorriso em papel fotográfico e molduras de madeira.
Seu corpo nu, abraçado por outro, no tapete da sala.
Esperava que todo sacrifício tivesse sua gratificação.
Mas não. A Morte era apenas aquilo. Cansaço. Decepção.


Autor: Diego Guerra